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A FAROFA 9

A FAROFA

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O Arnaldo era de Curitiba e fazia o curso de Medicina Veterinária. Tinha um sobrenome esquisito, de origem polonesa. Uma sopa de letrinhas. Nunca vou me lembrar da ordem certa. Kikovosky, koslovsky, krakopvoslk, kierilovsk, algo assim. Mas isso não interessa. O que interessa é o que aconteceu com ele quando morava numa república de estudantes, lá em Alfenas. Não me lembro bem se ele estava no terceiro ou no quarto período, só sei que era naquela época do entusiasmo do início da faculdade.

Por volta das dezoito horas e quinze minutos o Arnaldo parou sua Lambretta, uma espécie de jog ou motoneta, na porta da república onde morava e se preparava para entrar quando um carro parou na rua e alguém chamou seu nome. Era o Róbson, um colega de turma, que falou: “Ô Arnaldo, você já fez aquele trabalho das vísceras?”. Arnaldo respondeu negativamente: “Não, por quê?”. O outro explicou: “É que um carro atropelou um cachorro ali na rua de baixo agora há pouco. Se você quiser tirar as vísceras, tá na hora”. O outro agradeceu: “Róbson, eu lhe fico grato, cara! Mas eu passei o dia estudando para as provas e daqui a pouco, lá pelas sete, vou voltar para estudar mais com a turma. Hoje não dá pra pegar as vísceras. Mas eu te agradeço pela informação”. Róbson partiu e Arnaldo dirigiu-se à casa.

Colocou a Lambretta na garagem e entrou. Pretendia comer alguma coisa e voltar para estudar mais um pouco com o seu grupo de estudos. Semana de provas era aquela loucura, não dava tempo para nada. Enquanto caminhava, a informação do Róbson lhe veio à cabeça e ele achou que realmente era uma boa oportunidade. Seria uma preocupação a menos. Resolveu que iria pegar as vísceras do cachorro atropelado e guardar no congelador. Não gastaria mais do que uns quinze minutos, concluiu. Depois que terminassem as provas e a correria diminuísse, ele colocaria os órgãos no formol, de acordo com as exigências do professor da disciplina.

Foi até seu quarto, pegou uma sacolinha de supermercado, um par de luvas cirúrgicas, um bisturi, uma tesoura e saiu correndo. Acionou a partida da Lambreta e dirigiu-se ao lugar indicado pelo amigo. Em poucos minutos estava de volta com o produto da “cirurgia”.  Ao entrar em casa foi direto para a cozinha. Abriu a geladeira e depositou no congelador as vísceras do pobre cão falecido tão tragicamente.

Glorinha, a empregada, estava junto ao fogão de costas para ele. Enquanto mexia as panelas, distraída, ela assoviava baixinho acompanhado a música do Amado Batista que tocava no rádio de pilha que ela carregava pra todo lado, num bolso do avental. Arnaldo falou bem alto para fazer-se ouvir: “Oi Glorinha, como é que está o jantar?”. A moça voltou-se meio assustada e respondeu: “Desculpa, Seu Arnaldo, eu tava meio distraída. Mas a janta não demora, não. Eu tô começando a fazer. Daqui uns trinta minutinhos tá pronta”. Arnaldo resolveu que não dava pra esperar: “Olha Glorinha, eu não vou esperar, não. Tô com muita pressa hoje. Vou deixar pra jantar quando eu voltar. Por favor, pede para o pessoal deixar comida pra mim ou esgano um por um”. Glorinha deu uma risadinha e balançou a cabeça afirmativamente: “Pode deixar, Seu Arnaldo, eu falo, sim!”.

Depois do banho rápido, Arnaldo foi até o armário da cozinha e pegou um pacote de biscoitos recheados que saiu mastigando. Antes de sair alertou a empregada outra vez: “Glorinha, não se esqueça de avisar o pessoal pra deixar comida pra mim…”. A moça respondeu lá do seu posto junto ao fogão: “Não esqueço, não, Seu Arnaldo!”.

Passava da meia-noite quando Arnaldo estacionou a Lambreta na garagem e entrou em casa. O estômago reclamava a falta do jantar e ele foi direto para a cozinha. As panelas estavam todas sobre o fogão. Ele aproximou-se e destapou uma por uma. Todas vazias. Foi até a geladeira e lá também não havia comida. “Os desgraçados comeram tudo!”, concluiu. Pensou em acordar os colegas de república para reclamar, mas achou melhor que não. Certamente iria perder o sono e poderia prejudicar o desempenho na prova da manhã seguinte. Novamente foi até o armário, pegou uns biscoitos, um pão murcho e complementou o jantar com um copo de leite gelado. Foi para a cama meio revoltado com os colegas, mas o cansaço falou mais alto. Logo estava dormindo.

Cinco dias depois, terminadas as provas, ao entrar em casa Arnaldo se lembrou das vísceras no congelador e resolveu acondicioná-las devidamente. Foi até o eletrodoméstico e abriu o congelador. Não havia nada lá. “Quem será o safado que tirou daqui?”, ele refletiu. Achou melhor perguntar para a empregada que assoviava baixinho enquanto arrumava a cozinha: “Glorinha, você se lembra de um dia da semana passada que eu cheguei meio apressado e não pude esperar o jantar?”. Ela pensou um pouquinho e respondeu: “Lembro, sim, Seu Arnaldo. Foi aquele dia que o pessoal comeu toda a comida e não deixou nada para o senhor. Eu bem que pedi pra eles…”.

Arnaldo a interrompeu: “Pois é, Glorinha, naquele dia eu cheguei da rua com um pacote, uma sacolinha de supermercado, e coloquei no congelador. Por acaso você sabe quem tirou dali?”. Ela franziu a testa antes de falar: “Uai, Seu Arnaldo, naquele dia eu procurei carne pra fazer na janta e não achei. Aí eu olhei no congelador e vi aqueles miúdos de porco. Tava tudo fresquinho, cheiroso. Então eu peguei e fiz uma farofa. Ficou uma delícia! É uma pena que eles não deixaram nada para o senhor…”. O Arnaldo prendeu a respiração e pensou: “Graças a Deus! ”.

Review

9.0

Artigo escrito por Josè Nário de Fátima Silva da cidade de Monte Belo Sul de Minas Gerais. Em seu espaço serão publicados artigos de seus livros.

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